TEXTO DA AUTORIA :XANDÃO
BLOG :antinflamatorio.blogspot.com
PONTEARTA.
A cidade que eu escolhi é pequena. Bem pequena.
Aqui, não tem livraria, não tem cinema, não tem shopping center, não tem danceteria, não tem metrô, não tem restaurante de comida chinesa, japonesa ou alemã, não tem rodoviária, não tem teatro, não tem semáforo, elevador, escada rolante ou linha de ônibus urbano.
Aqui, as pessoas acordam cedo, vão à pé pra quase todo lugar (embora alguns gostem mesmo é de andar de carro, com o som muito, mas muito alto), dão bom dia mesmo p'raqueles que elas não conhecem e sabem o seu nome mesmo que você ainda confunda o delas.
Aqui, algumas pessoas ainda vão à venda de trator, e "estacionam" os cavalos na frente do barzinho, quem sabe aproveitando os ganchos fincados nos meios fios que, afinal, foram colocados ali décadas atrás pra se amarrar as rédeas mesmo.
Quando alguma entidade precisa de dinheiro, faz uma quermesse com leilão de gado e "bingo de frango". Você compra a cartela, baratinho, e na primeira batida ganha um frango assado ainda pelando, que pode comer ali mesmo. É só pedir pra cortarem. Se tiver sorte, também ganha uma garrafa de vinho pra acompanhar.
A cidade que eu escolhi não gosta muito de rock, gosta mais de música caipira ou sertaneja, dependendo da idade de quem tá ouvindo. Felizmente encontrei bons amigos pra compartilhar as minhas paixões musicais, cinematográficas e até literárias. E tem um pessoalzinho jovem que se diverte do mesmo jeito, ouvindo Beatles ou Tião Carreiro. Indispensável mesmo é a cerveja.
Aqui, sua profissão acaba virando sobrenome. É o fulano do Banco do Brasil, ou o sicrano do Posto, ou o beltrano Padeiro. Ou então acabam te conhecendo por aqueles que te amam. Pode ser o "filho do Toninho pedreiro" ou o "neto do Chiquinho do cascalho", até mesmo o "Alexandre da Fabiana". Pois é. Aqui eu tenho dona, e é melhor não duvidar disso.
Os visitantes mais desavisados às vezes se assustam com os anúncios de falecimento nos auto-falantes da Igreja. Diz uma lenda que há muito tempo, um padre, ao ser expulso, jogou uma maldição na cidade: quando morrer um, mais seis o acompanharão. Sei lá, quase sempre acabo contando, na maioria das vezes parece mesmo verdade.
Aqui, felizmente, não se morre muito de morte matada. E eu sempre me espanto porque acho grande o número de pessoas que resolvem tirar a própria vida. Só que ninguém pula da ponte que deu o nome antigo à cidade. Que nem era tão alta assim.
Aqui também se bebe muito. E já começam a ecoar estórias envolvendo uso de drogas mais pesadas. Fato é que há poucos anos ainda largavam as portas das casas abertas e paravam os carros na rua deixando a chave no contato. Hoje, é aconselhável não arriscar.
Aqui realmente vivemos em sociedade. Pro bem ou pro mal. Não pense você que conseguirá fazer alguma coisa escondido. Qualquer coisa. Sorte sua que não anunciam nos auto-falantes da Igreja. Nem precisam.
Por outro lado, não pense também que vai te faltar uma mão estendida se estiver em dificuldades no meio da rua. Você pode até não conhecer as pessoas direito, mas todos te conhecem. E conhecem o seu endereço e até as suas dificuldades físicas, mesmo que não saibam exatamente do que se trata.
A rádio daqui é comunitária, mas as pessoas gostam mesmo é da rádio da cidade vizinha. Que toca as mesmas músicas que a rádio daqui, ao menos é o que parece pra mim. Mas confesso que quase não ouço rádio. Minha mãe adora. É muito diferente do que ela está acostumada a escutar nas rádios de belzonte.
Dizem que quem chega aqui solteiro acaba ficando enrabichado. Eu fiquei. Deve ser culpa dessa mistura de italianos e gente da terra, que legou um povo tão bonito, homens e mulheres.
A política local, por aqui, é coisa muito, mas muito pessoal. Sabe quando envolve aquelas brigas entre famílias, de séculos atrás, parecendo estória do Shakespeare? Pois é. Temos também os nossos Montecchios e Capuletos. Mas é melhor não mexer nesse vespeiro.
Dizem que o etê de Varginha resolveu visitar minha cidadezinha primeiro. Mas acabou escolhendo uma cidade maior pra cair com seu disco voador. Que pena. Ele ganhou um sobrenome e nós perdemos uma boa fonte de renda. Mas as estórias permanecem e são divertidíssimas.
Dizem também que aqui tem lobisomem. Em algumas noites de lua cheia eu quase acredito. Dá vontade de uivar, isso é certo. De mula sem cabeça eu não fiquei sabendo. É fato que vez ou outra aparecem umas "mulas descabeçadas", que derrubam árvores sobre os postes da cidade e nos deixam, mais uma vez, às escuras. Como falta luz na minha cidade! Também é certo que já foi pior.
Como gostam de fogos de artifício, os meus concidadãos! Soltam foguetes pra anunciar casamento, noivado, batizado, comunhão, aniversário, quermesse, liquidação de colchões, inauguração de farmácia, saída de romaria, chegada de romaria... acho que soltam foguetes até pra avisar que chegou remessa nova de foguetes na venda.
Há pouco tempo um helicóptero ficou um dia inteiro sobrevoando a cidade. Quem quisesse - ou pudesse- pagar, podia arriscar um vôo panorâmico de 10 minutos. Muita gente foi. Muita gente provavelmente também tentou abater a máquina à estilingadas, coisa mais barulhenta. Eu achei desnecessário. Era um daqueles helicópteros pequenos, cujo modelo é o recordista mundial de acidentes. Ainda bem que não caiu.
Quem nasce aqui vive querendo ir pra cidade grande. Nem precisa ser capital. Varginha, Poços de Caldas ou Juiz de fora já servem, e ganham ares de capital nas postagens do Facebook. Muita gente sai, cansada das mesmas coisas que aqueles, que chegam das cidades maiores, elogiam. A verdade é que, quem sai, uma hora aprende a valorizar.
Aqui não existem pivetes, mendigos e favelas. Existe pobreza, é claro. Mas não se vê miséria. Trânsito? Talvez no domingo, na hora da missa. E só ao redor da praça.
Quando eu fiquei sabendo o nome da cidade pra qual eu ia me mudar, há 10 anos atrás, provavelmente tive a mesma reação de todas as pessoas de fora:
- Hein?
- Monsenhor Paulo. Sul de Minas Gerais. Pertim de Varginha.
- Hã?
É assim mesmo. Ficamos escondidinhos no mapa. Em alguns mapas, nem aparecemos. Entretanto, se você procurar direitinho, vai poder nos ver pelo Google Earth. Só que ainda não dá pra dar um zoom muito detalhado.
Você pode não ter visto: nossa cidadezinha é "global". Já aparecemos no Fantástico, em uma estranha matéria que envolvia cuecas aparecendo, calças caídas e skatistas. Coisa mais cosmopolita.
Tudo isso numa cidade que ainda tinha ruas calçadas com "pé de moleque". Hoje asfaltaram tudo. Por cima dos pés de moleque. Daqui a pouco eles voltam. Ah é: também já temos pista de skate. E nenhum médico especializado em fraturas. É melhor não cair.
Tudo isso numa cidade que ainda tinha ruas calçadas com "pé de moleque". Hoje asfaltaram tudo. Por cima dos pés de moleque. Daqui a pouco eles voltam. Ah é: também já temos pista de skate. E nenhum médico especializado em fraturas. É melhor não cair.
Muitas pessoas na minha situação, doentes crônicos, com dificuldades de locomoção e necessidades as mais diversas às vezes duvidam da minha opção. Olhando de longe, é mesmo temerário viver fora de um grande centro, sem acesso direto aos melhores hospitais e as modernidades que toda cidade maior oferece.
Não discuto com eles. Acho que cada um acaba descobrindo o que é melhor pra si. Algumas pessoas preferem a comodidade dos grandes centros. Eu escolhi ser acordado bem cedo pelo vôo barulhento das maritacas e pelo cancioneiro da passarinhada, pela conversa dos compadres indo pra roça - alguns de trator. Ser acordado pela barulhada das crianças brincando no meio da rua.
Deixei uma cidade de 4 milhões de habitantes estressados pra me encontrar de verdade em uma cidade de 8.600 almas gentis.
A cidade que escolhi pra viver o resto dos meus dias.
Minto. Eu não escolhi nada.
Acho que essa cidadezinha é que me escolheu. Sorte a minha.
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